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A equipe do Grupo de Pesquisa Clínica em Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) administrou, de forma inédita no mundo, uma terapia gênica experimental para o tratamento da Lipofuscinose Ceroide Neuronal tipo 2 (CLN2), doença rara que acomete uma pessoa a cada 200 mil e causa problemas neurológicos graves e progressivos. Os pacientes apresentam uma mutação genética que leva à deficiência numa enzima essencial para o bom funcionamento dos neurônios, a tripeptidil-peptidase 1 (TPP1), e sua falta gera um quadro marcado por convulsões, regressão neurológica, problemas de equilíbrio e perda de visão, podendo evoluir para morte precoce.

Se for bem-sucedida, a terapia genética experimental pode se tornar uma nova alternativa de tratamento, que atualmente é feito com a administração periódica de terapia de reposição enzimática (TRE) intracerebroventricular. Embora a TRE comprovadamente ajude a estabilizar e/ou reduzir a progressão do declínio neurológico que ocorre em pacientes com CLN2 não tratados, o procedimento exige a implantação de um cateter no cérebro para a sua administração, que deve ser feita a cada 15 dias, em ambiente hospitalar, para o resto da vida.

Segundo os médicos geneticistas do Serviço de Genética Médica do HCPA e investigadores principais do estudo, Carolina Fischinger e Roberto Giugliani, a esperança é de que a terapia genética, feita com a aplicação de uma única dose de RGX-181, produzida pela empresa REGENXBIO Inc., equipe as células cerebrais do paciente com as informações necessárias para produzir a enzima TPP1, modificando positivamente a evolução da doença. 

Após meses de planejamento, o procedimento foi realizado com o apoio de vários especialistas e setores do hospital, incluindo radiologia, neurofisiologia, neurocirurgia, pediatria, cuidados intensivos, tecnologia celular, enfermagem, farmácia, Centro de Pesquisa Clínica e Grupo de Pesquisa Clínica em Genética Médica. Além disso, o protocolo para a condução do procedimento foi analisado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instituições que avalizaram a capacidade da equipe para conduzir esse estudo de terapia gênica inédito em escala global. O HCPA é referência no tratamento de doenças raras.

O procedimento

A terapia foi administrada no paciente pediátrico através da punção do líquido cefalorraquidiano (que banha o cérebro) na região do pescoço. Com orientação de um scanner de tomografia computadorizada, o neurocirurgião Jorge Bizzi (foto abaixo) inseriu a agulha no espaço cheio de líquido na junção da medula espinhal e do tronco cerebral – chamado “cisterna magna” – e administrou o vetor viral (vírus adenoassociado – AAV) contendo o gene normal. 

 

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“Eu não poderia ter esperado um procedimento mais perfeito, depois de tudo o que havíamos planejado por muitos meses. Um resultado bem-sucedido nessa investigação pode não apenas mudar drasticamente o curso da vida de um paciente, mas abrir caminho para uma futura terapia genética para outras pessoas com CLN2 e muitas outras doenças raras”, avalia Carolina Fischinger. Ela diz que o paciente será monitorado continuamente para acompanhamento do desenvolvimento físico e cognitivo segundo parâmetros e escalas previamente estabelecidos, bem como para medir a quantidade de TPP1 no corpo e no fluido espinhal. 

Giugliani destaca que não é possível garantir qual a extensão do impacto da terapia genética nesse caso, “mas a possibilidade de obter benefícios terapêuticos através de uma única dose de terapia gênica seria um avanço significativo no tratamento dos pacientes com CLN2”. Para o geneticista, esse episódio coloca o HCPA, mais uma vez, na vitrine global da inovação em saúde.

Como identificar a CLN2

Bebês com CLN2 não apresentam sinais da doença ao nascer. Os primeiros indicativos aparecem em torno dos dois anos, quando começam a ocorrer convulsões e falta de coordenação progressiva. O diagnóstico é feito com exame genético, por isso, para detectar precocemente esses casos, espera-se que a doença seja adicionada à lista de condições testadas no Programa Nacional de Triagem Neonatal, que já prevê a incorporação futura da testagem para doenças lisossômicas, grupo ao qual pertence a CLN2.  O HCPA é o único hospital público do estado a atender esses casos. No momento, há dois pacientes em tratamento na instituição.

 

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Legenda: Parte da equipe envolvida na realização do procedimento.

Entre eles, está a Dra. Carolina Fischinger ao centro e, à direita, prof. Roberto Giugliani