Esse é um relato um pouco diferente do habitual. Trata-se do registro do dia em que a equipe da Coordenadoria de Comunicação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre teve oportunidade de acompanhar de perto uma parte do trabalho das equipes multidisciplinares que realizam transplantes na instituição. Este texto é uma homenagem à vida e, principalmente, a todos profissionais que atuam nesta causa.
São quatro horas da manhã. O celular do cirurgião cardíaco Luiz Henrique Dussin apita com uma mensagem da Central de Transplantes. No interior do estado, foi confirmada uma morte encefálica e a família da pessoa aceitou doar seus órgãos. Sem esta decisão generosa, essa história, e a vida de algumas pessoas que esperam por um transplante, acabaria aqui. O “sim” da família em um momento tão difícil garante oportunidade de vida a um paciente em especial. Ele é o primeiro da filade espera por um coração e está no Hospital de Clínicas, onde se encontra em estado crítico. Uma corrida pela vida começa neste exato instante.
O sol ainda não se levantou, mas os contatos e mensagens trocadas entre a equipe de transplante cardíaco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre já fervilham. No início da manhã, os médicos reúnem-se para acertar os detalhes finais e estruturar o cronograma de ação.
A essa altura, o possível receptor e sua família já estão a par de tudo. A equipe clínica está iniciando os preparativos do paciente enquanto na cidade do interior, a cerca de 120km de Porto Alegre, o doador está sendo monitorado e mantido artificialmente em aparelhos pela equipe local.
Equipe prepara os insumos para o transporte
Tudo precisa estar perfeitamente acertado, pois após a retirada do coração, o órgão precisa ser transplantado preferencialmente em até 4 horas para não se deteriorar. Além disso, outros órgãos serão retirados e levados por equipes de outros hospitais.
A reunião segue. Um dos médicos presentes é o cirurgião Álvaro Albrecht. Enquanto dá carga no celular, acerta com os colegas Márcio Martins e Luiz Dussin que ele irá buscar o órgão e os demais farão o transplante quando ele retornar. O quebra cabeça para acertar os horários de outras equipes envolvidas na captação dos demais órgãos e a sincronização de todos os profissionais começa a ser montado.
O grupo de WhatsApp criado para o procedimento é totalmente focado. Define-se quem irá acompanhar a jornada: a enfermeira Alexsandra Pereira e os residentes Bernardo Mastella e Joana Carolina, pois o Hospital de Clínicas não apenas presta assistência em saúde, ele forma profissionais nesta área. Albrecht discute com a Central de Transplantes os detalhes do transporte. O tempo do translado de carro inviabilizaria o procedimento.
Álvaro Albrecht acerta detalhes com a Central de Transplantes
É oferecido um helicóptero, mas a aeronave pode demorar. O médico sobe ao 12º andar, onde busca o cooler e os produtos necessários para o transporte, que são organizados pela equipe de suprimentos. Ao telefone, solicita um avião e batedores para a hora do retorno, a fim de evitar qualquer risco de perder o coração para o trânsito.
A Central de Transplantes consegue o avião. Poucos minutos se passam. Albrecht reúne a equipe que irá viajar e todos vão juntos até o aeroporto. No caminho, vai dando instruções e distribuindo tarefas a serem realizadas, como agilizar por telefone o acesso ao aeroporto e a confirmação de documentos. Relembra histórias dos mais de 50 transplantes cardíacos que já realizou e age para ter a máxima segurança em cada processo.
Aguardando para atravessar a pista do Aeroporto
A chegada ao aeroporto não é por onde todos estamos acostumados: é pela Avenida Sertório, nos hangares da aviação de pequeno porte. Um carro da companhia que fará o transporte vem buscar a equipe. Os poucos instantes de espera parecem uma eternidade. No hangar da UniAir, o avião já está sendo reabastecido. Tinha pousado há poucos minutos, após retornar de uma viagem para buscar outro órgão, em uma cidade no sul do estado. O embarque é imediato e rapidamente a aeronave tem autorização da torre para decolar.
São menos de 20 minutos de vôo até o destino, mais 20 minutos de carro. A equipe chega ao hospital do interior às 12h. O procedimento começa assim que chegam os médicos de outro hospital que vieram captar fígado e rins.
Equipe embarcando para buscar o coração
No grupo de WhatsApp, cada deslocamento e procedimento é registrado. As equipes na capital e no interior precisam funcionar em perfeita sincronia. É como uma dança precisa, com movimentos que devem ser harmoniosamente realizados, sob pena de todo esforço se perder em função do tempo.
Em Porto Alegre, no Hospital de Clínicas, o futuro receptor já está sendo levado para a sala do Bloco Cirúrgico, às 13h. No interior, às 14h30 a captação do coração está concluída e a equipe do HCPA inicia o retorno. Às 15h, embarcam no avião. Ao mesmo tempo, na capital, a equipe do Dr. Dussin inicia a incisão no receptor.
Cada minuto conta. No aeroporto Salgado Filho, o avião toca o solo às 15h47. A EPTC está esperando com os batedores. Sirenes ligadas, coração a bordo do veículo de Albrecht. São exatas 15h57 quando o residente Bernardo avisa no grupo de WhatsApp: saindo do aeroporto. Do Bloco Cirúrgico, a perfusionista Cristiane avisa que está começando a cirurgia. A equipe de segurança do hospital e as ascensoristas estão de prontidão.
Chegada do coração ao HCPA
A viagem do aeroporto ao HCPA é rápida. Da frente do hospital já se ouvem as sirenes da EPTC. Às 16h09 o veículo para em frente à portaria principal. O recipiente com o coração é descarregado e a residente Joana Carolina e a enfermeira Alexsandra sobem com ele para o Bloco enquanto Albrecht e Bernardo agradecem o apoio dos batedores para realizar a viagem em apenas 12 minutos, ao invés dos 40 minutos que poderia demorar em função do trânsito.
Órgão é entregue no Bloco Cirúrgico
O novo coração chega à sala de cirurgia. Ao mesmo tempo em que o órgão doente é removido, o novo é preparado. Às 16h30, Dussin, Márcio, e a equipe já estão realizando o implante do órgão. O procedimento é altamente complexo e traz desafios mesmos às mais experientes equipes. A cirurgia dura em torno de 4 horas e é bem-sucedida.
Esta história se passou em meados de dezembro. A recuperação do paciente foi muito boa e ele pôde passar a virada do ano em casa, com sua família.
A jornada de um transplante envolve centenas de pessoas. O trabalho conjunto, a soma das competências e vontades resulta em vida para o paciente. É só mais um dia em um hospital. É um grande dia para quem percebe o valor da vida e se dedica a ela.
Quem doa órgãos é parte desse e de todos os outros dias que o receptor terá oportunidade de viver.